segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

In the Shadows II



Mais um dia, mais um pôr do sol, mais um ano.

Naquele fim de tarde, naquele crepúsculo de dia visitava as pegadas das gaivotas escritas na areia. Pequenos segredos suavemente apagados pelas pequenas ondas de um mar azul. Essas mesmas ondas que insistiam no beijo húmido daqueles pés despidos de calor. Segredos. Esses que pegadamente deixava no seu passado, longe demais para serem levados para o fundo do mar azul. Mas não longe o suficiente para serem esquecidos. Porque a pegada não foi desenhada na areia, mas esculpida no coração.

Mais um ano. Tantos anos já que aqueles longos cabelos morenos esvoaçantes carregavam na sua raíz… Tantas desilusões. Tantos objectivos adiados. Tanta nuvem inesperada. Tanto sol escondido.

Apenas ela, a praia, o mar e os seus pés. Nem gaivotas se avistavam. Nem o sol. Apenas ela e o arrependimento. Sentou-se e consentiu que fosse arrepiadamente acariciada pelas águas frias da noite. Deitou-se e sentiu o abraço da areia iluminada pelas estrelas. E ali ficou.

Porque queria que a gélida noite de Inverno congelasse o seu pensamento. Não queria mais pensar. Não queria mais relembrar. Não queria mais sentir. Não mais.

E desejou que o pôr do sol fosse o nascer do dia.


quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Há palavras que nos beijam

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)


Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
Alexandre O'neill

A dor

Há dias em que a dor se apodera do nosso corpo e da nossa alma...Minuto a minuto, segundo a segundo avança sem dar treguas. Quando damos por nós, a dor já ocupa todo corpo e toda a alma, chega a cortar a respiração, a manchar os nossos sonhos e a apagar a chama da vida.
Hoje, a dor toma conta de mim...Numa tentativa de a fitar, levo o pensamento para o futuro e para o passado... No entanto ela parece irredutível. Olho, novamente, para o mais profundo de mim na busca de algum alívio...Procuro e não encontro... A dor veio para ficar...Desisto, finalmente, de a afastar de mim e espero tranquilamente que se canse do meu corpo e da minha alma.

A sós com a noite

A luz que se arredonda
Alongando-me a sombra sozinha
A saudade a bater
Uma dor que ao doer é só minha

Um desvio inquieto
Um olhar indiscreto na esquina
Um rapaz de blusão
Arrastando pela mão a menina

Passa um velho a pedir
Incapaz de sorrir, pelos passeios
Um travesti que quer
Assumir-se mulher sem receios

O alarme de um carro
Um cigarro apagado indulgente
Um cheiro inusitado
O semáforo fechado para a gente

Sobe o fado de tom
E o fadista que é bom improvisa
Estão em saldos sapatos
Desce o preço dos fatos de cor lisa

Um eléctrico cheio
Uma voz de permeio vai chover
Bate forte a saudade
Como é grande vontade de te ver.

Jorge Fernando

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Quero

Quero que me oiças sem me julgares
Quero que me dês a tua opinião sem me aconselhares
Quero que confies em mim sem me exigires
Quero que me ajudes sem tentares decidir por mim
Quero que cuides de mim sem me anulares
Quero que olhes para mim sem projectares as tuas coisas em mim
Quero que me abraces sem me asfixiares
Quero que me animes sem me empurrares
Quero que me apoies sem te encarregares de mim
Quero que me protejas sem mentiras
Quero que te aproximes sem me invadires
Quero que conheças as coisas que mais te desagradem em mim
Que as aceites e não pretendas mudá-las
Quero que saibas...que hoje podes contar comigo...
Sem condições.

Só por amor...

"Caminho pelo meu caminho. O meu caminho é uma via com um só rasto: o meu.
À minha esquerda, um muro eterno separa o meu caminho do caminhode alguém que transita ao meu lado, do outro lado do muro. De vez em quando, neste muro encontro um buraco, uma janela, uma fenda...E posso olhar para o caminho do meu vizinho ou vizinha.
Um dia, enquanto caminho, parece-me ver, do outro lado do muro, uma figura que transita ao meu ritmo, na mesma direcção que eu. Olho para essa figura: é uma mulher. É linda. Ela também me vê. Olha para mim. Torno a olhar para ela. Sorrio-lhe...Ela sorri-me.
Um momento depois, ela segue o seu caminho e eu apresso o passo porque espero ansiosamente outra oportunidade para me cruzar com essa mulher. Na janela seguinte detenho-me um minuto. Quando ela chega, olhamos um para o outro através da janela. Digo-lhe por meio de sinais quanto gosto dela. Responde-me por meio de sinais. Não sei se significam o mesmo que os meus, mas tenho a intuição de que ela entende o que lhe quero dizer.
Sinto que ficaria muito tempo a olhar para ela e deixando que ela olhe para mim, mas sei que o meu caminho continua...Digo a mim mesmo que talvez haja mais adiante no caminho uma porta. E espero poder transpô-la para me encontrar com ela. Em nada há uma certeza maior do que no meu desejo, por isso esforço-me por encontrar a porta que imagino. Começo a correr com os olhos cravados no muro. Um pouco mais adiante, aparece a porta. Ali está, do outro lado, a minha companheira, agora ja amada e desejada. À espera...à minha espera...A porta é muito estreita. Passo a mão, passo o estômago, retorço-me um pouquinho sobre mim mesmo, quase consigo passar a cabeça...Mas a minha orelha direita fica entalada. Empurro. Não há maneira. Não passa. Não posso usar a mão para retorcê-la. Não ha espaço suficiente para passar com a minha orelha, por isso tomo uma decisão...(Porque a minha amada está ali, à minha espera. Porque é a mulher com a qual sempre sonhei e que me está a chamar...)
Tiro uma navalha do meu bolso e, de um só golpe rápido, atrevo-me a dar um corte na orelha, para que a minha cabeça passe pela porta. E consigo-o. Mas, depois da minha cabeça, vejo que o meu ombro fica entalado. Já nada me importa, por isso...Retrocedo e, sem pensar nas consequências, tomo impulso e forço a minha pasagem pela porta. Ao faze-lo, a pancada desarticula o meu ombro e o braço fica pendente, como sem vida. Já estou quase do outro lado. Precisamente quando estou prestes a acabar de passar pela fenda, dou-me conta de que o meu pé direito ficou entalado do outro lado. Não tenho duvidas. Já estou quase ao alcance da minha amada. Por isso agarro no machado e, cerrando os dentes, dou o golpe e desprendo a perna.
Ensanguentado, aos saltos, apoiado no machado e com o braço desarticulado, com uma orelha e uma perna a menos, encontro-me com a minha amada. Ela olhou para mim enquanto o seu rosto ficava crispado num esgar de repulsa.-Assim não, assim não quero...Eu gostava de ti quando estavas inteiro".
Jorge Bucay

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

In the Shadows...

Anoitecia neste Inverno antecipado, sentido na hipotermia anestesiante dos narizes e dedos… ou do que restava deles. E lá estava ela. No silêncio invadido pelo crepitar da madeira devorada pelas chamas dançantes vindas da lareira. Não havia outro. De vez em quando, o respirar mais intenso da felina enroscada ao seu lado, invejosa do calor, confundia-se com o som da combustão. Não havia mais nada. Apenas ela e os flashes de memória que iam e vinham… iam e vinham… e voltavam a ir na promessa de um regresso instantâneo. Apenas ela e o passado. Apenas ela e a dor. Que loucas e incessantes viagens! Tudo parecia promissor mas nada é o presente. Agora tudo é passado no presente que existe pelo passado que foi. As chamas começam a extinguir-se. A sua música ardente desvanece na dança que se silencia. E a felina escondia o nariz por entre as negras patas depois de uma crise aguda de preguiça…

Antes de se fechar para a noite, aproximou-se do vidro embaciado da janela do quarto. Os olhos falavam-lhe apenas do frio vestido de branco a espreitar no parapeito. A memória, essa contava-lhe a história da praia e do mar. Uma lágrima sulcou a face, serpenteou no queixo e despedaçou-se no peito envelhecido pelas palpitações da tristeza. E depois caiu uma outra. Fechou a janela. E as lágrimas encontraram o aconchego da almofada.

O vermelho ténue da lareira ia escurecendo a árvore de natal adormecida pelo bailado de cores que a haviam percorrido durante o dia. A felina tinha-se levantado, dado meia volta e enroscado novamente.