terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Só por amor...

"Caminho pelo meu caminho. O meu caminho é uma via com um só rasto: o meu.
À minha esquerda, um muro eterno separa o meu caminho do caminhode alguém que transita ao meu lado, do outro lado do muro. De vez em quando, neste muro encontro um buraco, uma janela, uma fenda...E posso olhar para o caminho do meu vizinho ou vizinha.
Um dia, enquanto caminho, parece-me ver, do outro lado do muro, uma figura que transita ao meu ritmo, na mesma direcção que eu. Olho para essa figura: é uma mulher. É linda. Ela também me vê. Olha para mim. Torno a olhar para ela. Sorrio-lhe...Ela sorri-me.
Um momento depois, ela segue o seu caminho e eu apresso o passo porque espero ansiosamente outra oportunidade para me cruzar com essa mulher. Na janela seguinte detenho-me um minuto. Quando ela chega, olhamos um para o outro através da janela. Digo-lhe por meio de sinais quanto gosto dela. Responde-me por meio de sinais. Não sei se significam o mesmo que os meus, mas tenho a intuição de que ela entende o que lhe quero dizer.
Sinto que ficaria muito tempo a olhar para ela e deixando que ela olhe para mim, mas sei que o meu caminho continua...Digo a mim mesmo que talvez haja mais adiante no caminho uma porta. E espero poder transpô-la para me encontrar com ela. Em nada há uma certeza maior do que no meu desejo, por isso esforço-me por encontrar a porta que imagino. Começo a correr com os olhos cravados no muro. Um pouco mais adiante, aparece a porta. Ali está, do outro lado, a minha companheira, agora ja amada e desejada. À espera...à minha espera...A porta é muito estreita. Passo a mão, passo o estômago, retorço-me um pouquinho sobre mim mesmo, quase consigo passar a cabeça...Mas a minha orelha direita fica entalada. Empurro. Não há maneira. Não passa. Não posso usar a mão para retorcê-la. Não ha espaço suficiente para passar com a minha orelha, por isso tomo uma decisão...(Porque a minha amada está ali, à minha espera. Porque é a mulher com a qual sempre sonhei e que me está a chamar...)
Tiro uma navalha do meu bolso e, de um só golpe rápido, atrevo-me a dar um corte na orelha, para que a minha cabeça passe pela porta. E consigo-o. Mas, depois da minha cabeça, vejo que o meu ombro fica entalado. Já nada me importa, por isso...Retrocedo e, sem pensar nas consequências, tomo impulso e forço a minha pasagem pela porta. Ao faze-lo, a pancada desarticula o meu ombro e o braço fica pendente, como sem vida. Já estou quase do outro lado. Precisamente quando estou prestes a acabar de passar pela fenda, dou-me conta de que o meu pé direito ficou entalado do outro lado. Não tenho duvidas. Já estou quase ao alcance da minha amada. Por isso agarro no machado e, cerrando os dentes, dou o golpe e desprendo a perna.
Ensanguentado, aos saltos, apoiado no machado e com o braço desarticulado, com uma orelha e uma perna a menos, encontro-me com a minha amada. Ela olhou para mim enquanto o seu rosto ficava crispado num esgar de repulsa.-Assim não, assim não quero...Eu gostava de ti quando estavas inteiro".
Jorge Bucay

2 comentários:

  1. Penso que a pergunta que fica no ar é se ele não tem ido ter com ela seria mais feliz?

    Não será importante para o seu trajecto ter passado aquela porta. Ainda que a orelha não cresça e que o braço não se mexa como mexia, a realidade é que ele ficou destroçado. E isso é o primeiro passo para ele se levantar!

    Quantas vezes caimos quando estamos a tentar passar de gatinhar para andar? Uns mais outros menos, mas todos caímos muitas. Claro que uns aprendem a andar melhor que outros e no final do dia é a andar que as pessoas chegam onde querem... E às vezes nunca lá chegam.

    A grande questão a que isto nos leva é aonde queremos chegar... Eu a essa só sei responder por mim. Quero ser feliz. Para isso, e embora acredite que passa por encontrar a minha cara metade, começa por mim. "A mais espantosa relação que alguma vez vou ter com alguém é comigo mesmo", li isso algures à bastante tempo.

    Por isso ele, e não ela, é quem mais tirou de ter passado pela porta. Porque ele e não ela, sentiu no seu peito o que o impeliu a abdicar de si para ir para onde queria chegar, ele e não ela sentiu o momento antes de ela o destruir...

    Sim, gostavamos todos que a resposta dela fosse outra, e por ventura poderia-se argumentar que ele seria melhor ou estaria melhor se assim fosse. Também se poderia argumentar o oposto, que nunca teria tido aquela oportunidade de desenvolvimento pessoal. É a terra dos SeS e esses não movem moinhos.

    Da vida fica o que tivemos coragem de ir buscar, do que não tivemos medo de reclamar por nosso.

    Nunca me torturou à noite ter falhado, mas sim ter falhado por não ter feito algo que ainda me poderia ter feito não falhar.

    Marisa, o futuro a Deus cabe, a ti cabe encontrá-lo. Não tenhas medo de ficar perneta, tem sim medo de não viver...

    Jinho,
    Rui

    PS: já agora, viver é diferente de cometer suicídio, lol, se ele se tem decapitado já não estariamos a ter esta conversa... A cabeça ainda é precisa para sentirmos a vida!! ;)

    ResponderEliminar
  2. Jorge Bucay…
    Interessante texto, Marisa.

    Encontro nele dois aspectos, não necessariamente divergentes e exclusivos. Ou talvez três. O primeiro reside na porta. Espanta-me esse homem movido pelo amor (?), sabendo do seu caminho e consciente em si próprio de que “talvez haja mais adiante no caminho uma porta” imaginando, inclusivamente, essa mesma porta, esse impaciente acesso à sua amada. Até os seus olhos ficam cravados nesse muro de tão intenso que o seu desejo é. Ora foi uma porta estreita que ele imaginou? Não creio. Ele teria imaginado uma porta e a amada nos seus braços. Um pormenor tão importante como o da largura da porta não deverá ter sido pensado sequer por ele. É um desejo que nem tudo vê. Contudo, a Vida nem sempre é aquilo que esperamos ou quase nunca o é. Essa porta estreita seria obra do Destino? Destino? Favorável ou desfavorável? Tanto um como o outro seriam possíveis. Um destino favorável poderia ser possível mesmo com uma porta estreita se ele tivesse tido o discernimento suficiente para esperar por uma porta à sua medida. No muro da Vida uma porta fechada pode ser a chave necessária para transpor uma outra. Mas para isso também é necessário que esta última exista. E se inexistente assim fosse? Desfavorável.

    “Porque é a mulher com a qual sempre sonhei”. Mas aquela linda mulher seria o seu peixe? Porque não procurou ele uma porta melhor? Porque se precipitou no desejo imediato do encontro quando as circunstâncias lhe diziam o contrário? “O Amor é cego”, costuma-se dizer. Irracional. Mas seria Amor o que ele sentia por aquela mulher? O que é o Amor? O que é a Paixão? Porque não passou a mulher para o lado dele, sendo a porta mais estreita? Ela a poderia conseguir transpor. As mulheres são, em geral, mais franzinas que os homens… Ela que o queria inteiro… Se ela o amasse verdadeiramente, evitaria que ele se despedaçasse, recusando assistir ao sofrimento do seu amado. Quem ama não gosta de ver nem deseja que o seu amor sofra, independentemente da natureza dessa dor, física ou intelectual. E assim chegamos ao segundo aspecto: Amaria-o ela? Se tal fosse verdade verdadeira, a integridade física não deveria ser o motivo daquela implacável rejeição. Ele que prescindiu de si próprio para se encontrar com ela. Ele que encontrou o sofrimento para a alcançar e acabou encontrando a dor em duplicado: “Eu gostava de ti quando estavas inteiro.”. Gostava? Gostar?

    O que o muro separava era Amor?

    Independentemente disso, ele acreditava que era Amor. E todas as acções dele devem ser interpretadas como tal. Amando e desejando-a procurou, bem ou mal, alcançá-la. Acreditou no Amor correspondido. Teve esperança na existência de uma porta. Esforçou-se. E atingiu o seu objectivo. Mesmo que depois de um esforço seja necessário ainda um esforço hercúleo. Porque era no cruzamento do seu caminho que residia o caminho para a sua Felicidade.

    E no muro desta Vida, são necessárias, por vezes, desilusões e sofrimentos dilacerantes para tirarmos então os olhos cravados do muro e, com a dor cravada no coração, acreditarmos/aceitarmos que os cegos cruzamentos são necessários para abrir a porta da Felicidade.

    ResponderEliminar